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Presságio

20/05/2011

Acordou diferente naquela manhã de terça-feira. Geralmente se acordava sem ânimo, atrás de forças para continuar o dia que sempre era mais difícil que o esperado. Ao levantar-se, sentiu uma vontade incomum de andar pela casa, observar minuciosamente os detalhes de sua reclusão quase que eremita. As roupas estavam espalhadas pela sala; na cozinha, muita louça para lavar, restos de comida pela mesa e panelas ainda sujas da refeição do dia anterior – mal lembrava que houvera; a casa era isto: um cubículo que mal cabia em sua pequenez. Curioso: para muitas pessoas assim se comportava nossa personagem. Na adolescência, se preocupava pouco com a construção de seu caráter e se contentava em passar horas a fio em atividades que seus irmãos classificavam como “besteira”. Era o que gostava e ponto final. Isso ia de encontro às inúmeras e intermináveis recomendações de seus pais, principalmente de sua mãe, pessoa que se preocupava tanto em corresponder às expectativas alheias que acabou potencializando essa triste característica em uma detestada praga no seio familiar: queria controlar todos os atos, mostrar que estava ali, que poderia pôr ordem naquela bagunça; no fundo, só queria ser notada e amada, como as mães dos romances que raramente lia.

O sol abriu. Nem tinha reparado que eram 7 da manhã. As horas passam rápido demais, implacáveis, irreversíveis. Queria que o tempo passasse mais devagar. Na verdade, às vezes deveria passar mais rápido e outras vezes, mais devagar. Como sempre, não escolhia uma opinião por que defender. Dizia: “Sou uma pessoa moderada. Não gosto de extremos, prefiro o meio”. Leia-se: “No meio posso agradar a uma quantidade maior de pessoas”. Seria essa uma herança de sua querida mãe? No fundo sabia que quem quer tudo fica sem nada, como a história do pássaro na mão. Pegou seu tocador de música, pôs em qualquer uma do seu álbum favorito e se apressou para pegar o ônibus. Não tinha amigos, para receber caronas. Mesmo que tivesse, é o tipo de pessoa que não tem amigos com carro.

Tinha uma banca de revistas. Todos os dias apurava mais ou menos R$ 80,00. Não gostava do seu trabalho, mas também não fazia nada para mudar sua situação. Esperava que uma força desconhecida pudesse melhorar as coisas. Expectativas. Elas só servem para te desapontar. Um conhecido seu disse uma vez que é mais fácil ser pessimista do que otimista. “Ora, é muito simples: quem é pessimista obviamente não espera nada de bom do mundo. É mais cômodo viver assim, pois certamente um dia o otimista se decepcionará com algo, sensação que o pessimista dificilmente sentirá. E ainda vai dizer ao otimista: ‘eu avisei’”. Chegou à praça onde sua banca funcionava. Então percebeu um movimento que não costuma acontecer por aquelas bandas. Foi atrás e descobriu que o mendigo que ficava perto de sua banca foi assassinado no início da manhã. Olhou para a bolsa e conferiu se tinha trazido o pôster do Pink Floyd que ele tinha pedido que trouxesse. O dia, que prometera ser diferente, não deixou a desejar. Mas ninguém imaginava que seria diferente assim.

Abriu a banca, pegou as contas, limpou a poeira, estendeu o tapete e o pôster e sentou. Tinha uma superstição curiosa: se o primeiro cliente do dia fosse um mendigo, fazia questão de lhe dar uns trocados, pois era bom sinal: durante o expediente, receberia em dobro. A ironia é que apenas duas vezes isso aconteceu e em ambas a retribuição monetária foi abaixo da cota. Em compensação, teve bons momentos que fizeram com que ela prosseguisse com a tradição. Aparece um mendigo. Saca algumas moedas do bolso e entrega. Minutos mais tarde entra um rapaz procurando revistas pornográficas e, ao ver que a dona é uma mulher, se constrange e chega a esboçar um rubor na face.

– Não sei se deveria pedir desculpas, mas, desculpe. Acho que você não deve ter.

Ela sorriu.

– Não há problema. É verdade, não tenho mesmo.

Gradativamente as amarras da timidez foram se soltando, o que proporcionou uma agradável conversa. Clarice era reservada como poucas; seu coração, entretanto, quando se abria era como um campo de flores em plena primavera para quem o contempla. O celular dele tocou; e certa música do álbum preferido de Clarice começou a preencher seus ouvidos.

2 Comentários leave one →
  1. 11/06/2011 20:48

    Bem contado! E envolvente.
    []s

  2. Virgínia permalink
    28/05/2011 14:09

    Vini, muito legal!
    Adorei o final. =D

    =**

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